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– ensaio para um poema sem palavras

 

 

observações 

i

o mais importante que eu tinha para dizer

foi dito no silêncio entre as palavras

e principalmente quando faltava a palavra

e não tinha nada a ver com o que estava

sendo dito. eu também omiti uma parte deste

rascunho e não te contei da primeira parte

do sonho. antes de você me mostrar aquela

pedra que na verdade era uma pessoa que

na verdade era uma pedra que na verdade

era uma pessoa que na verdade era uma pedra

que na verdade era uma pessoa

eu não te contei que nesse sonho eu fui instruída a habitar o meu rosto na tua axila

e depois fui educada para abrir teus braços

lentamente

numa forma diagonal

ii

na aula de dança, a professora sugere imagens

para indicar posturas e movimentos:

“imagine que um fio te puxa pelo topo da

cabeça”, “cole o umbigo nas costas” ou

“a crista ilíaca olha para frente”. ela fala:

“bate um prego no umbigo”. depois, como

quem ganha intimidade, ela passa a dizer

apenas “bate o martelo”, e já sabemos que

devemos mover a musculatura do abdômen

na direção interna do corpo, e mantê-la assim,

esses músculos sustentam e articulam a nossa

estrutura, apoiam e liberam o movimento dos

braços, as forças das pernas. mas me distraio

com essas imagens, o prego no umbigo

(um martelo batendo um prego no meu umbigo

– eu sendo presa na parede por um prego no

umbigo) o umbigo nas costas (o umbigo

tocando as costas por dentro, e criando um furo

que atravessa o corpo, o corpo saindo pelas

avessas atravessando esse furo umbilical,

formando uma maçã infinita),

os olhos dos ossos.

naquele dia, a professora disse: “imaginem que

existe um lápis preso ao seu corpo no períneo,

agora desenhem um 8 no chão”. esse exercício

introduziu uma série de movimentos que

meditavam o serpentear. serpentear é uma curva

que passeia por todo o corpo, primeiro para a

frente, depois para o lado e depois em todas as

direções incluindo os dedos das mãos, dos pés,

o pescoço, soltando-se nas pontas. a mesma

curva se move dentro do corpo de uma ponta

a outra, entra e sai completamente, vai embora

e chega uma nova curva.

mais tarde naquela noite, eu ainda não tinha

abandonado a imagem do lápis preso ao corpo,

uma terceira perna escrevendo oitos pelo chão.

resolvi testar a imagem e logo me vi introduzindo

um lápis na vagina. muitos anos antes dessa noite,

um professor de desenho havia sugerido que a

gente sempre experimentasse os materiais de

desenho com todos os sentidos, inclusive que

a gente os lambesse, que os testássemos no

paladar. o professor tinha uma imagem, voz e

postura sérias. com relação ao tato, ele

exemplificava, fechando os olhos, movendo os

dedos suavemente sobre a superfície de um

papel muito liso e dizia “sempre tem um lado

mais rugoso que o outro”. certa vez ele disse

para a gente testar a intensidade do fio na

lâmina do estilete. eu testava todas essas coisas,

mas ainda não tinha feito amor com um lápis.

naquela noite construí um dildo com vários

lápis de cor e fizemos amor. tentei fazer um 8.

depois inverti as pontas dos lápis aquareláveis

para dentro de mim, ali dentro eles encharcaram

e eu gravei os líquidos do orgasmo num papel.

o que restara calcificou depois da exaustão.

uma escrita, sim, um novo gestual de desenho.

na aula seguinte, a professora de dança repetiu

o exercício de imaginar um lápis no períneo.

depois ela começou a deslocar a posição do lápis.

o lápis no umbigo e desenhávamos um 8 na parede.

o lápis nas costas, preso ao joelho, nas cochas.

iii

 

existem duas transcrições para essa imagem.

uma delas é um jeito específico com que

eu posiciono e movimento o meu corpo.

a outra é um poema que escrevi.

em cada desenho há uma postura

para os órgãos do corpo

e há um poema por dentro

um poema que não será lido em suas palavras

os órgãos reagem

o desenho será lido como quem olha um desenho

no espaço em que você se movimenta –

entre não entender e começar a supor.

palavras escritas dobradas num bilhetinho,

ao invés de te mostrar o escrito, te mostro o

bilhetinho dobrado

eu te mostro o bilhete dobrado para explicitar

o convite da recusa

por trás do papel, é possível ver apenas o

suficiente para que você saiba que

– há palavras.

esse é um dos jeitos que encontrei para que teu

olho fareje palavras, mas não consiga comê-las.

as palavras vão descansar

vamos assistir as palavras descansando,

pra gente desaprender a precisar delas,

pra gente descansar também.

e todas as nossas sensibilidades soltas

como numa dissolução

entraremos em acordo tácito

pelo fim da supremacia da palavra

entre nós

iv

quando fecho os olhos imagino

uma serpente ligada à minha cabeça,

como parte de mim, como um órgão.

sinto o fluxo nervoso das sensações,

a implantação e continuidade muscular, a forma

como o movimento da serpente repercute nos

músculos da minha face, até os meus ombros.

a serpente não quer se soltar, ela faz parte de

mim, ela ondula como um braço, ela se ergue,

boteia num golpe e se esquiva, sustenta-se.

uma, duas, muitas serpentes na minha cabeça

e eu sinto a continuidade do tecido nervoso

que nos une, sinto o arrepio entre as escamas,

sinto o sabor nas línguas. eu sinto como todas

elas se movimentam logo antes de dormirmos,

elas se movimentam desacelerando até que,

finalmente, adormeceremos no mesmo preciso

instante, pois somos uma, somos eu. eu as sinto,

a gestação dos ovos, o momento da troca das

peles, o despertar da nova sensibilidade.

mergulho no mar, sinto todas as minhas bocas

prendendo a respiração embaixo da água,

depois saímos a superfície e respiramos juntas

o mesmo fôlego da vida, o ar entrando por

todas as nossas bocas abertas. descansamos

molhadas. eu gosto muito de me imaginar como

medusa. eu amo esta mulher. não trocaria a

chance de olhá-la de modo a evitar me tornar

uma pedra. sempre gostei de me imaginar sendo

uma pedra. gostava dos grandes monólitos

quentes. gostava de sentir cheiro de pedra.

o herói, sempre detestável e covarde, descobriu

que se a olhasse pelo reflexo ele não viraria

uma pedra, assim conseguiu matá-la, decapitou

a medusa. a cabeça da medusa continuou tendo

poderes de proteção e foi fixada num escudo.

v

2020, 2021, há uma abertura perfurando o

corpo na altura do esterno, uma abertura em

forma de losango, por dentro dessa abertura um

fio se estende, me atravessando sem me tocar,

um fio muito fino e gelado, e o que há de mais

doloroso é que ele não toca as paredes internas

do losango, se mantém em equidistância,

suspenso. me atravessa em toda a sua longa

extensão depois vai embora deixando por

algumas horas ainda o seu rastro frio suspenso

no meu peito, também como um fio, fino,

invisível, doloroso.

noutras vezes sentia o nó no fôlego através

do esterno. alguns desenhos se parecem com

palavras. aperto os olhos para enxergar no nó

um pacto de proteção, cabeça da medusa no

centro do meu escudo, o esterno guardado,

aquecido. a fita de cetim é elemento de

promessa e de enfeite. um laço de fita de cetim

torna o que quer que seja em um presente,

um bem que se faz a uma outra pessoa ou a si

mesma. dentro do nó estou convicta e nada

me toca.

aperto os olhos mais uma vez e, por fim,

desato o nó pois é preciso desaguar.

essas fitas na verdade eram azuis.

embora o desenho seja em grafite,

elas permanecem azuis,

olha mais uma vez e vê:

lá está a cor azul.

azul claro,

como as cores de dezembro no recife.

vi

 

ao que se diga: é poema – passa a ser.

estes desenhos são poemas – daí então

começa a caça.

e se eu te digo que são poemas e você se

movimenta em procurar por palavras mas

me esforcei para que não restassem palavras

visíveis, entretanto, neste esforço, deixei

verterem tantas mais palavras do que jamais

houvera imaginado dizer.

 

 

vii

 

retenho o pensamento, antes dos traços dessa escrita, antes dos traços desse desenho virarem coisas.

 

viii

 

um dia não era possível continuar a conversa

com palavras, então foi feita uma música.

a esta música eu respondi com o desenho

de uma escrita, em lápis de cor vermelha sobre

cartolina verde.

foi dito que a carta-resposta de desenhos escritos era plena:

“resposta plena”, foi dito.

e assim foi encerrado o diálogo.

mas a carta possui uma terceira página,

em lápis de cor vermelha sobre cartolina rosa.

a página oculta, agora revelada, desestabiliza o fim.

o diálogo deverá continuar, haverá outra música.

 

 

ix

 

os desenhos abstratos são coisas bastante figurativas

x

 

houve um momento, quando finalmente

retiramos as máscaras e pude ver o teu rosto,

sentamos para almoçar. um dia luminoso de

muita chuva salpicava pela janela nas plantas,

uma máquina de lavar, tábuas concretadas nas

paredes estancavam a sangria das paredes.

de repente você parou e congelou o olhar no

fundo de uma memória nova: uma parte do

pensamento ainda não tinha percebido que ele

havia morrido. corria livre ainda, cuidando

dele, preocupava-se com a alimentação dele,

pensava em sugerir legumes cozidos para ele.

o cuidado ainda em movimento, inércia, uma

parte do amor ainda estava fazendo planos.

neste momento você percebeu isso e se

comportou de modo silencioso, para poder

observar ainda essa parte do amor agindo.

esperou até que essa parte voltasse pelo buraco

de onde surgiu, e quando ela estava a uma

distância segura, você começou a me falar

sobre isso que acabara de ver e ouvir dentro

de si. o teu choro que se seguiu era porque

você não queria que essa parte se informasse.

você queria que essa parte continuasse fazendo

assim, o alerta vivo do cuidado ativo. querias

sentir a parte desavisada do amor, por alguns

instantes, num sopro, um segundo que fosse,

pois dentro desse tempo ele vive. “até quando

vou sentir isso?”, você se-me perguntou.

então veio teu choro imenso. e você continuou

falando, para me explicar, porque é isso que tu

fazes, tu me explicas. falavas e choravas até um

ponto em que tua fala e teu choro se tornaram

um canto que não era possível de compreender

por este idioma, por este alfabeto, por estas

cores nem por estes cheiros. o canto em outra

língua amassava a palavra e a lágrima em

infinitas dobras densas curvas sonoras.

cada palavra fundida com uma lágrima ressoa

este outro idioma. eu também te escutava

palavrágrima através das minhas lágrimas,

te ouvia através dos olhos, meus canais

lacrimais navegaram o teu canto para dentro

do meu corpo.

 

depois de um certo tempo e muito lentamente

as coisas foram voltando a ser as coisas,

a fala voltou a se organizar em palavras

com letras e sílabas, que é apenas um dos

outros jeitos possíveis que formulam que há

boca – ouvido – olho – lágrima – amor

xi

ao mencionar minha vontade de juntar

desenho e poema, imediatamente eu os estou

separando. ontem, deitada sobre a imensa pedra

que aflorou ao lado do rio percebi que eu não

conseguia me imaginar como parte da pedra.

mas conseguia me colocar no lugar dela

xii

cada palavra tem a natureza de uma vírgula

e eu tropeço em cada letra ao caminhar

na tua direção. escuta: o som entre as letras.

retenho-me antes de abrir a boca, encho as

bochechas do ar-palavra, que não será dita.

sopro no teu rosto. antes da retenção é onde

a palavra mesmo habita, antes de existir a

palavra, é onde ela está, além disso e

enquanto isso, outros cursos descaminham

dançam orbitam cruzam.

eu vi que você estava olhando na direção de

uma estrela que não vias, mas era para

ela que você estava olhando

 

 

 

 

 

ensaio para um poema sem palavras 

pesquisa, desenhos e textos por clara moreira

com acompanhamento curatorial de ariana nuala

fotografias de ana lira

recife 20202021

(desenhos em lápis de cor sobre papel

de bambu com algodão 29,7x21cm,

realizados entre janeiro e março de 2021)

outras referências 

Papel de seda (2015) Ana Martins Marques 

Pencil mask (1973) Rebecca Horn

Up to and including her limits (1973) Carolee Schneemann

Rastros corporales (1982) Ana Mendieta

Alphabet (1973) Ewa Partum

Fotopoemação (1973-2011) Anna Maria Maiolino

Poema (1979) Lenora de Barros

Poema processo: uma vanguarda semiológica (2017) Gustavo Nóbrega (org.)

ato–desato (2021) clara moreira

Anti (2016) Rihanna

3a página (2021) clara moreira

(Desenhos rápidos de observação coreográfica no Ballets Russes) (1914) Valentine Gross

Da morte, odes mínimas (1980) Hilda Hilst

An Alternative History of Abstraction (2020) manuel arturo abreu

Apaixonite aguda (1998) Itamar Assumpção

agradecimentos 

álvaro moreira, álvaro gomes, cristiano lenhardt,

cristina gouveia,  henrique vaz, íris campos,

leonardo cisneiros, mariana moreira,

suely gomes, yuri bruscky.

gal e vicente.

epupsp@gmail.com

cargocollective.com/claramoreira

desenho-poema: ensaio de poesia sem palavras

é um projeto apoiado pela Lei Aldir Blanc

por meio do Edital de Formação e Pesquisa 

LAB PE, da Secretaria de Cultura do Estado de

Pernambuco – SECULT-PE, em conformidade

com a Lei Nº. 14.017/2020 Lei Aldir Blanc,

Decreto Nº.10.464/2020,

Lei Estadual Nº17.057/2020

e Decreto Estadual 49.565/2020.

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